Caatinga pode ser severamente impactada por mudanças climáticas

A seca, junto ao aumento da temperatura, vem se destacando como uma das grandes vilãs das mudanças climáticas no Brasil. Estudos recentes têm demonstrado que o aquecimento e a redução da pluviosidade previstos para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste já estão causando impactos como o aumento da frequência de secas na Amazônia, fenômeno que vem trazendo consequências para a fauna mesmo em regiões quase intocadas da maior floresta tropical úmida do planeta.

Diante deste cenário, é compreensível que as preocupações de cientistas e ambientalistas se voltem para a Amazônia e outras florestas úmidas destas regiões. Mas este foco também tem um efeito adverso: ele deixa de lado a fauna e a flora de biomas naturalmente mais áridos, como a Caatinga.

“Existia uma visão de que porque esses organismos evoluíram num clima seco, quase desértico, eles estão adaptados às mudanças climáticas”, diz Mario Moura, ecólogo e pesquisador da Universidade Federal de Campinas.

Moura é o primeiro autor de um estudo já reportado pelo ((o))eco no ano passado, demonstrando que essa suposição passa longe da verdade. Seus resultados sugerem que, até 2060, 40% da Caatinga vai passar por um processo de homogeneização em suas comunidades de plantas – isto é, de perda de diversidade entre regiões, tornando todas mais parecidas biologicamente. A pesquisa também prevê que 99% do território do bioma deve perder espécies localmente, e que plantas lenhosas, como árvores, serão mais afetadas.

“E essa perda também é muito mais pronunciada sobre as espécies que são raras, ou seja, aquelas que já tem uma distribuição geográfica um pouco mais restrita”, Moura acrescenta.

Um resultado surpreendente, e que levanta sérias preocupações em relação ao futuro dos organismos que habitam a Caatinga.

“O que se está mostrando é que eles estão à beira do colapso já,” diz Moura.

Moura não está sozinho em sua conclusão. Um estudo publicado este ano na revista Journal of Arid Environments estima que mudanças climáticas devem reduzir a área de distribuição geográfica de espécies de répteis psamófilos – animais especializados em viver em terreno arenoso – que habitam diferentes ambientes secos e abertos na América do Sul.

“Nós estudamos 10 espécies que ocorrem ao longo do que a gente conhece como o Diagonal de Formações Abertas (DFA), que engloba o bioma Caatinga, o Cerrado e o Chaco,” diz Thaís Guedes, coordenadora do estudo e pesquisadora na Universidade Estadual de Campinas.

Guedes e seus colaboradores colocaram à prova a mesma suposição explorada por Moura. “Será que mesmo essas espécies que estão enterradas num ambiente árido vão ser impactadas?”

Os cientistas basearam seu estudo numa modelagem de distribuição de espécies – modelos matemáticos que preveem quais regiões um organismo pode potencialmente habitar, baseado nas condições climáticas e ambientais dos habitats onde sabemos que ele vive. Essa ferramenta ajuda pesquisadores a identificar áreas adequadas para a ocorrência de animais e plantas em locais fora de sua distribuição conhecida, mas é também útil para entender como diferentes espécies ocuparão o espaço geográfico em cenários climáticos futuros.

O estudo estimou quais áreas dentro do DFA teriam condições climáticas para abrigar cada uma das dez espécies analisadas nos futuros de 2040 e 2060, levando em conta cenários de desenvolvimento socioeconômico otimistas e pessimistas – isto é, com mais ou menos emissões de carbono e outros gases de efeito estufa. O resultado foi bem claro.

“Elas vão ser impactadas, e muito impactadas”, diz Guedes.

A previsão é que mudanças no clima reduzam a área de distribuição de seis dos dez répteis analisados. Dois deles – as cobras Phalotris matogrossensis e Rodriguesophis iglesiasi – seriam completamente extintos no cenário otimista previsto para 2060. Outro lagarto, Vanzosaura savanicola, perderá 100% de sua área de distribuição atual no cenário pessimista de 2040 e em ambos os cenários de 2060, ganhando uma área mínima (equivalente a 1,7-6,3% da atual) de distribuição potencial em outras localidades.

Em contrapartida, uma única outra cobra, Philodryas psammophidea, ganhará área total habitável em todos os cenários previstos. Segundo Guedes, P. psammophidea é a única beneficiada em todos os casos por ser uma espécie generalista, e sua resposta às mudanças no clima está longe de ser a regra, especialmente quando consideramos a quantidade de especialistas de habitat analisadas no estudo.

“Pensava-se comumente que essas espécies, por serem adaptadas a solos mais áridos […] na Caatinga, no Cerrado e no Chaco, estariam mais adaptadas a temperaturas mais altas. E a gente refutou essa ideia”, diz Júlia Oliveira, mestre em Biodiversidade, Ambiente e Saúde pela Universidade Estadual do Maranhão e primeira autora do estudo.

Os autores alertam ainda que a gravidade da situação vai além dessas estimativas de mudanças de distribuição. Ainda que os modelos prevejam que alguns répteis ganhem novas áreas habitáveis em determinados cenários, no mundo real, não existe garantia de que eles consigam chegar até esses novos habitats em potencial.

Numa terra de biomas fragmentados, é possível que barreiras antrópicas (cidades, plantações, estradas e outras) e geográficas simplesmente impeçam o deslocamento ou o estabelecimento das espécies, condenando-as a declínios mais severos que aqueles estimados inicialmente pelo estudo.

O preocupante futuro da Caatinga-Às preocupações de Oliveira, Guedes e colaboradores somam-se ainda as tendências reveladas pelo estudo de Moura. “O trabalho do Mário Moura com a vegetação, é muito importante também, […] porque a vegetação contribui para a saúde do solo,” diz Oliveira. Além de condições climáticas ideais, os répteis estudados por ela dependem de um solo com uma composição particular de areia, argila e silte.

“Está tudo relacionado,” Oliveira conclui.

E se o impacto sobre a flora da Caatinga torna ainda mais incerto o futuro da fauna do bioma, o inverso também é verdade. Além de investigar o futuro das plantas, Moura também é o primeiro autor de um estudo similar que avalia como mudanças climáticas podem impactar os mamíferos da Caatinga, publicado na revista Global Change Biology em 2023.

Moura e colaboradores utilizaram, em seus dois estudos, um tipo de modelagem muito parecida com aquele empregado por Oliveira e Guedes. Seu foco, no entanto, era nos futuros de 2060 e 2100 – mais uma vez levando em conta cenários de maior e menor emissão de gases estufa. Mas ao invés de avaliar ganhos e perdas na distribuição de cada espécie analisada – 100 espécies de mamíferos e mais de 3.000 espécies de plantas –, Moura se preocupou em entender que proporção do bioma sofreria alguma perda de espécies. Ele também calculou um índice conhecido como diversidade beta – que mede a diversidade entre diferentes áreas do bioma – para entender se, tal como as plantas, a comunidade de mamíferos também passaria por uma homogeneização na Caatinga.

Jornal da USP Foto Agencia Brasil